O poeta de todos os tempos
Márcio Renato dos Santos
Reler Que País é Este? é ter a certeza de que a pergunta nunca terá uma resposta definitiva. Afinal, se em 1980 o Brasil vivia a ressaca da ditadura militar, com tensões pontuais, agora em 2010 os enfrentamentos são outros. Mas, se as respostas para a interrogação se modificaram, esses 30 anos confirmaram a qualidade da poesia de Affonso Romano de Sant’Anna. Leia a matéria completa
O poeta mineiro viveu ou, com mais precisão, sofreu o seu tempo e, a partir de contato com os fatos da realidade, fez poemas em meio a censuras, sequestros, buzinas e britadeiras. Escrever sobre a própria aldeia para se tornar universal não é mera fórmula para carimbar o passaporte rumo à eternidade. Mas é o que fazem os poetas, os grandes, desde Homero. Sant’Anna seguiu pela mesma trilha.
Ele retratou os horrores da ruína que se tornou, lenta mas irreversivelmente, o Brasil. Em “Crônica Policial”, como se fosse um setorista do caderno cotidiano, mostrou as tragédias que a desigualdade social começou a gerar neste eterno país do futuro: “Ontem três homens duros e armados/ entraram na casa de um casal amigo/ comeram, beberam, violentaram uma visita.”
Atento, flanou, não pelas avenidas principais, mas pelas ruas periféricas que formam essa permanente nação adiada: “A hora mais desamparada de minha vida/ é quando/ vou pelos subúrbios de deseperanças povoado:/ as pessoas se abastardando,/ as casas se encolhendo,/ a vida se sujeitando.”
De olhos há muito tempo bem abertos, soube falar de ecologia, quando a palavra não era sequer mencionada nessa falsa pátria de chuteiras. Sant’Anna inseriu uma baleia, a Moby Dick de Melville, em pleno sertão de Guimarães Rosa.
Falou dos índios e, sobretudo, falou da mulher, mas não da maneira como a tradição da poética tupiniquim costumava fazer e ainda faz. Ele não louvou a “querida namorada”, nem a Iracema, muito menos a princesa destinada a espelhos e esmaltes. Sant’Anna apontou para o óbvio (e isso há 30 anos): as mulheres pensam, têm desejos e vontade.
Ler e, principalmente, reler
Que País É Este? é se deparar com uma poesia escrita com perícia e, portanto, de fácil compreensão, apesar de tanto ritmo, erudição e da visão de mundo crítica e implacável de um poeta incomum.
Resenha publicada na Gazeta do Povo.